Retalhos de uma vida - Livro do autor do blog

http://www.bookess.com/read/7054-livro-retalhos-de-uma-vida-/ ISBN - 978-85-8045-076-7 Definir um livro pela resenha é um fato que só é possível quando o livro realmente apresenta um conteúdo impar, instigante, sensível, inteligente, técnico e ao mesmo tempo de fácil entendimento....e Retalhos de uma vida, sem sombra de dúvidas é um livro assim. Parabens, o livro está sendo um sucesso. Ricardo Ribeiro - psicanalista

sábado, 29 de maio de 2010

O anel que se perdeu

( História real de um amor perdido faz algum tempo )

Meu Deus, porque me abandonaste ?

Repito sempre esta frase quando algo me incomoda seriamente e não sei como resolver, esperando que me possam dar a resposta para devolver-me a paz interior.
Em desespero dirijo-me a ti, em passo apressado entro no cemitério, com os olhos rasos de água, por vezes chorando, mas com esperança, com amor, por seres a única que me compreendes, que sempre me recolheste, e consegues mostrar o que não enxergo, de uma vida que sinto perdida, e com alguma raiva por não estares ao meu lado. O vazio que sinto por vezes, conduz-me a este lugar vazio, onde só as pedras falam e dizem alguma coisa e as flores tentam disfarçar a morte, dando um ar da sua graça. O silêncio que dentro de mim se faz, não é o mesmo deste lugar, que me dá uma certa calma, são silêncios diferentes , embora semelhantes, que sinto de uma outra forma, não porque o seja, mas porque o sinto, ou desejo que seja assim.
Vergo-me e abandono os joelhos na terra, contemplo a foto e teu nome na pedra, a identificação do corpo e da alma, que mora um metro mais abaixo, carinhosamente te chamo vóvó, sendo a referência do espírito materno, que tua filha não quis, ou não soube honrar, porque submissa a um homem intolerante perdeu toda a sua identidade, entregou-se de alma e coração ao cuidar da casa e do marido de forma silenciosa, contendo momentos de raiva, sem um lamento.

Porque estou agarrado ao teu espírito e rejeitei o de minha mãe ?

Sendo sangue do meu sangue, carne da minha carne, não deveria ser assim, mas assim é na realidade.
Honrarás Pai e Mãe. Mas que Pai ? Que mãe ?
A honra não pertence a quem é honrado, mas a quem lhe concede a honra de ser honrado.
Não basta parecer, é necessário ser.
A postura, as atitudes perante os outros é importante para que nos concedam a honra de estarmos e sentirmos que estamos entre iguais.
Tudo parece incomodar-me, tudo me incomoda, mas o que fica são sentimentos que machucam, que agridem, sob a forma de prazer ou das lembranças das imagens que desejo esquecer.

Meu Deus, porque me abandonaste ?

Algo de ti ficou em mim, algo de mim se abandonou em ti, a ideia de que morri, faz-me aproximar de ti.
Sem corpo, a energia que os sentimentos geram, dão-me um pouco de vida, de uma corpo sem vida, embora vivendo, projeta-se no vazio do teu corpo, e sem nada de ti, conduz-me à luz, recolhida que estava nas trevas, sentei-me a teu lado, prisioneira da morte, não me quiseste, mas já morri.
Não me incomoda tanto assim a vida, mas antes a vida sem vida que sinto em mim, e quando não posso suportar a dor no peito, vejo-me neste lugar sagrado, em que a vida, sem vida, ainda consegue alimentar a vida de quem está vivo, marcada que fui a ferro e fogo, te pertenço para além da vida, sem correntes nem amarras, grades ou policiais, sou tua prisioneira.
Procuro o teu colo aqui prostrada, por cima do teu corpo, que a terra se encarrega aos poucos em comer, em transformar noutros corpos com vida, como se os vapores vindos dessa decomposição, me iluminasse, mostrasse o caminho, mas o teu espírito brotado da terra, que o vento pode transportar, não o consigo enxergar longe daqui, morreu contigo, está em ti.
Parece que nunca foi pertença de mim, e só quando não suporto a dor, e o sofrimento me atormenta, eu quero, desejo estar aqui, perto de ti, como se este momento fizesse parte de mim, que me acalma, e te pergunto, como curar a dor que sinto em mim ?
Falo contigo, recordo o teu carinho, as tuas palavras, o aconchego dos teus braços, e, é neste momento, que tudo parece ficar calmo, como se todas as energias se concentrassem nesta união, da vida e da morte, e só aí consigo entender-me como ser humano.

Meu Deus, porque me abandonaste ?
Meu Deus, o que fizeste de mim ?

Cuidaste de mim desde tenra idade, foste a vóvó, que fez de mãe e pai, a vida era dura para eles, trabalhavam sem descanso para o sustento do dia a dia, muito embora entenda que não me esqueceram, deixei de fazer parte da família, de partilhar as suas vidas.
A minha vida era contigo, foste tu que me ensinaste as primeiras palavras, as primeiras letras, a forma de comportar-me, e quando mais tarde, já com sete anos de idade fui para a escola, a minha vida era repartida entre o teu aconchego e a casa dos meus pais.
Comecei a entender a diferença de estar contigo e com eles.
Por vezes faço uma pergunta a mim própria; porque não consigo carregar o teu espírito e o transformar na minha vontade, e venho aqui à procura de ti, para que juntas possa enxergar algo em mim ?
No lugar do espírito, carrego o fardo das angústias, da tristeza e do sentimento de culpa de uma vida que não desejo, mas da qual não tenho força para sair.
Porque sinto a necessidade de estar junto a ti, que nem corpo pode existir mais, para que o teu espírito inunde minha alma, e ganhe energia para partir decidida em fazer alguma coisa por mim ?

Vóvó, o que fizeste de mim ?

Por vezes chego a pensar que só me deste aconchego, que quando queria colo, me aconchegavas no teu corpo, que não julgavas, apenas tentavas entender, e que não conseguiste ter uma postura firme quando eu errava, acolheste-me simplesmente, e não me colocaste perante a vida tal como ela é, e não como gostaria que fosse.
O amor que encontrei em ti, era materno, que tudo perdoava, umas vezes dizendo que era pequena demais para entender, outras que o tempo me iria moldar, mas tudo isso fez-me dependente de ti, do teu colo, do calor do teu corpo que apaziguava o mal estar que sentia, que servia de abrigo.
Os pensamentos, as ideias como referência talvez nunca fossem sentidas, porque a tua postura doce te impedia de ser firme, e colocar-me no lugar que devia.
Senti em ti, o chocolate que sempre quis, quando sentia a boca amarga, embora sentindo que tinha de mudar, nunca fui largada no mundo sozinha, como ser autónomo, para movimentar-me na selva humana, certamente por medo de alguém me magoar, muito embora o teu esforço, observo de que nada valeram teus cuidados.
Por amor tentaste livrar-me da maldição, da dor e do sofrimento, mas tal como eu, foste derrotada, porque cada vez mais sinto-me agredida com o mundo à minha volta e já lá vão trinta anos.
Talvez por isso reclame o teu corpo, e não tenha presente a referência do teu pensamento, porque a única imagem psíquica que ficou gravada, foi essa atitude materna do aconchego, que tudo perdoa, em nome de um amor, que agora me faz sofrer.
Que amor foi esse, que não me garantiu a vontade própria, a convição nas palavras e nas atitudes para caminhar rumo a um objetivo ?
Temo, que nunca tenha existido um objectivo em ti, senão o amor materno, que te fazia mais dependente de mim que eu de ti, mas que se tornou a prisão de ambas.

Choro por ti. Choro por mim.

Tenho essa sensação ruim dentro de mim, e ao mesmo tempo que causa-me frustração, desejo que estejas comigo, sem que possas estar na realidade, mas a noção da minha incapacidade em cumprir o teu espírito, como o crente que se ajoelha perante Deus, a verdade, porque mais uma vez ultrapassou as regras do bom senso e disso toma conta.
Chego a pensar se a minha vida, não é a procura da minha punição ?
A tua generosidade e amor relevam sem julgar, acalma, sinto o aconchego, o carinho, mas a que falta a firmeza na atitude, na postura, para que sinta no íntimo porque me aconteceu, o que fiz para que fosse possível acontecer, e o que devo fazer para que tal não se verifique.

Meu Deus, o que devo fazer por mim ?

Talvez a repetição de tanta proibição que o meu pai me impôs, me fizessem sentir culpada, mas que nunca entendi, e que me recolhi no teu colo na tentativa de entender alguma coisa, mas que nunca percebi porque estava errada.
O amor por aquele homem, tantas vezes convertia-se em ódio, devido ás atitudes intolerantes e repressivas, em que as poucas palavras, davam por vezes lugar à agressão física, acabando sempre recolhida num canto da sala ou no quarto, tentando com a minha boneca imaginar as mesmas cenas de que antes fora vítima.
Entendo que meu pai foi marcado pelo tempo da escassez e da dificuldade, que o tornaram ou fizeram dele o ferro, que mais vale partir que torcer, intolerante e repressivo, com a rigidez da formação de gente humilde, em que as normas da sociedade e a moral ética eram cumpridas de forma inflexível, porque sempre foi assim, e assim vai continuar.
Essa intolerância e inflexibilidade psíquica, que não admite outro modo de estar e de enxergar as coisas, que nem sabia explicar, mas que impunha de qualquer jeito, porque assim é que está certo, o que antes lhe fora embutido o gravou para sempre, passou a ser, o que outros pretenderam que fosse, uns e outros nada sabendo explicar, mas todos cientes da sua razão, tornou-se a doença do sagrado dever, de acorrentar os outros aos seus pensamentos.

De onde viria aquele sagrado dever de impor o que julgava sagrado ?
Será que existe o sagrado ?

De um lado o sagrado dever de meu pai, de proibir tudo que era proibido, do outro a Deusa vóvó, que tudo tolerava, sedutora, compreensiva.

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