Eram três da madrugada, o telefone tocou, o que àquele hora é sempre motivo de preocupação, um mau prenúncio, a não ser que alguém tenha ligado por engano.
Atendi o telefonema, e dei conta de uma mulher a chorar convulsivamente, muito embora não conseguisse perceber o que dizia, lhe reconheci a voz.
Era a D.Irene, esposa de meu pai, que não minha mãe, que falecera muito tempo atrás, a dar-me notícia do seu internamento urgente no Hospital de Abrantes, centro de Portugal, em estado de coma.
Pedi que mantivesse alguma tranqüilidade, que eu iria de imediato ao hospital para saber o que se estava a passar.
No dia anterior tinha passado por sua casa, estava de cama adoentado, e no meio da nossa conversa disse alguma coisa, que não fazia sentido, retomando de imediato o diálogo que estávamos a ter.
Agora percebi, que aquela frase curta, que não fazia sentido, seria, embora momentâneo, o inicio de um estado alterado de lucidez, anunciando o coma.
Tentei culpar-me por não me ter apercebido do que estava a acontecer, mas não havia tempo para lamentações, porque a hora era difícil, exigia de mim toda a energia para dar os passos necessários para inteirar-me da situação clínica em que meu pai se encontrava.
Deixei a casa aos cuidados da mãe de meus filhos, então minha esposa, e coloquei os pés a caminho, dado que a jornada era longa, e teria ainda de percorrer cento e cinqüenta quilômetros até chegar ao hospital.
È nestas ocasiões, que nos apercebemos da importância de ter um automóvel á porta de casa, e lá fui com destino marcado, com lágrimas nos olhos, pensando que desta vez seria difícil meu pai escapar da morte.
Durante o percurso tentei mentalizar-me, que a vida é assim mesmo, que um dia estaremos nós na mesma situação, ente a vida e a morte, á espera de ficarmos fechados dentro de quatro tábuas com um balde de cal despejado na barriga, para mais depressa apodrecer, porque outros estão na fila de espera, e o terreno do cemitério é escasso.
Mas como em situações difíceis existe sempre um restinho de esperança do quase morto retornar á vida, a idéia de vez em quando me assaltava , talvez por necessidade de tranqüilizar a minha angústia e tristeza.
No entanto existia um passado recente de luta contra um câncer da próstata, com metástases ósseas, em que o valente resistiu, muito embora com dores horríveis e sofrimento, ao ponto do seu processo de recuperação espantar os médicos, que não acreditavam no que estava acontecer.
Cheguei ao hospital por volta das cinco horas da manhã.
Tudo á meia luz, no meio de um silêncio absoluto, sem que uma alma viva estivesse presente, entrei pelos corredores da morte à espera de encontrar meu pai com vida, cuja intenção seria dar-lhe a mão, e dizer-lhe, estou contigo.
Devo confessar que estas poucas linhas me emocionam profundamente, coisa que não sinto ao escrever as minhas memórias da guerra colonial, em que o afeto fala sempre mais alto que os próprios acontecimentos.
Não era a morte que temia, mas a ausência física de meu pai.
Não era a morte que temia, mas as suas palavras amigas.
Não era a morte que temia, mas a alegria de o ter vivo, e de partilhar consigo alguns momentos.
Encontrei o médico de plantão, e tentei inteirar-me do seu estado de saúde.
- Seu pai está em coma. Agora está nas mãos de Deus.
Estaria nas mãos daquele em que não acreditava que existisse.
Agradeci ao médico a informação, sai do hospital pensativo, e com um aperto no peito, com a missão espinhosa de amparar a mulher que chorava por ele, a tentando preparar para a morte.
As histórias que contamos para tentar consolar o outro, e a nós mesmos, são sempre as mesmas.
A vida é assim mesmo, mão tem volta a dar, é preciso ser forte nas horas difíceis, blá, blá, blá.
com uma vontade enorme de chorar com ela, deveria resistir para que o quadro não ficasse tão negro.
D.Irene, temos que nos preparar, ser forte, porque desta será muito provável que não possa escapar.
Mulher dedicada, mas sempre preocupada em excesso, negativa, mas boa senhora, derramou as últimas lágrimas de uma noite assombrada pelo o fantasma da morte, em que a solidão da viuvez decerto também a atormentava.
Entretanto já era dia, sete horas de uma manhã amena de Verão, deixei a D.Irene, desta feita acompanhada por gente amiga, e retornei ao hospital, cuja intenção seria tentar ver, e estar com meu pai.
Encontrei um enfermeiro amigo de infância, contei o que se estava a passar, pedi que me informasse da situação clinica atual, sem paninhos quentes.
O meu amigo Catarino lá foi aos cuidados intensivos para se aperceber do estado de meu pai, enquanto eu fumava um cigarro, e tentava preparar-me para o pior.
Naqueles breves instantes, que parecem uma eternidade, tudo rola na cabeça, num mar de dúvidas, de incertezas,, cujo fim não desejamos.
Amor de filho é muito forte, pelo menos no meu caso, que sempre a voz firme do comandante se fazia ouvir, bem como o afeto de um companheiro de jornada.
Passado algum tempo o Catarino regressou, e disparou sem mais nem menos:
- O que se passou com o teu pai ?
Julguei que não tinha percebido o que lhe havia dito anteriormente, ou com a aflição nem sequer teria contado o estado de coma em que se encontrava.
-Estive com ele, pareceu-me bem disposto, pelo menos sorridente estava.
Não contive as lágrimas, abracei o Catarino, agradeci o favor, e preparei-me para o ir ver.
Dei algum tempo a mim próprio na tentativa de recuperar alguma tranqüilidade.
Entrei nos cuidados intensivos com um leve sorriso nos lábios, como sinal de esperança, que a vida ainda não tinha terminado para nós dois, cuja finalidade seria sentir, que não estava sozinho, de alguma forma protegido, dado que o afeto se traduz através de um apoio incondicional nas horas mais difíceis.
- Então pão, o que aconteceu ?
- Com um sorriso nos lábios, disse:
- :Morri, mas estou de volta. Morrer não custa nada.
Era sempre assim realista, sem denguices, com o sentido da vida, sem lágrimas, angústia e tristeza, encarando as adversidades da doença, os problemas do dia a dia, e até a própria morte. Só pedia uma morte ¨santa ¨, porque as dores provocadas pelo o câncer foram horríveis, insuportáveis, a ponto de me pedir para o matar.
- Desta já me safei, disse ele. A sorte de um homem é escapar.
Nada de dramatismo, de coitadinho.
- Enquanto dormia o sono da morte, vi uma luz no fundo de um túnel.
Meu pai tinha tido uma experiência de quase morte, mas nem sequer parecia um pouco afetado por isso .
- Deixei-me ficar e não a quis seguir, disse ele.
- Mais tarde, não sei se voltou a ver essa luz, mas comunicou o propósito de partir, em virtude de a vida já não fazer sentido para ele, e trinta dias depois o acompanhei á sua última morada.
Que descanse em paz meu pai.
Lembrei-me de Einstein e da sua teoria da relatividade, em que a velocidade da luz nos faz navegar em outras galáxias.
Será a vida as trevas, o lado escuro e estranho do universo ?
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